Eram 10h30min da manhã de domingo, dia 27/01/2013. Minha esposa me acorda e sussura no meu ouvido:
__ Aconteceu uma tragédia numa boate chamada KISS. Não quis te acordar antes, mas desde às três da manhã estou acompanhando pelo facebook. Mais de 200 pessoas morreram!
Ainda meio sonolento, não dimensionei o tamanho das mudanças em nossas vidas a partir daquele despertar. Estava sonolento e meio entorpecido, quase que inconscientemente sentindo o que teria que enfrentar nos próximos dias.
Minha esposa falou novamente:
__ Estão precisando de médicos, psicólogos e psiquiatras no ginasião municipal, para onde levaram os corpos que serão reconhecidos pelas famílias. Já liguei para o Hospital de Caridade para ver se eles precisavam de médicos voluntários, mas no momento estão com a equipe completa.
__ Marcos, você não acha que devíamos ir ajudar?
Ainda com o entorpecimento típico de um domingo atípico, me adiantei, querendo inconscientemente fugir de tamanha responsabilidade, que viria, ao ser obrigado a enfrentar essa tragédia. Respondo meio aflito e irritável:
__ Ajudar como? Pensei imediatamente nos psiquiatras que conheço e imaginei se eles iriam para lá também. Havia lido poucos minutos antes no facebook do Dr. Vilmar Seixas, que ele viria ajudar, já estava viajando de Capão da Canoa para Santa Maria. Então, a Andréia, minha esposa, médica ginecologista , insiste:
__ A Aline( psicóloga, amiga nossa) está nos convocando. A situação é muito triste.
Minha irritação aumenta, percebo que não terei como fugir. Não se pode fugir da vida. E a vida que tenho neste momento é aqui em Santa Maria, num domingo fatídico e eu sou psiquiatra.
__ Ok. Vou tomar um banho rápido e vamos para lá.
Em 10 minutos estávamos na frente do Ginásio Municipal, munidos de carteira de identidade profissional , tentando entrar no portão errado.
__ Guarda, somos médicos, viemos ajudar e ele é psiquiatra. .
__Moça, a equipe está completa.
Minha esposa responde:
__ Não, fomos chamados, precisamos falar com a psicóloga Aline. Eles precisam de psiquiatra. Não tem muitos psiquiatras em Santa Maria.
Contornamos o prédio e fomos até a frente do ginasião. Logo um militar do Exército nos levou até outro portão, por onde entramos no complexo. Lá na frente, tivemos o primeiro sinal do que seriam as próximas horas, dias... Familiares exaltados, querendo entrar para reconhecer seus mortos.
__ Vocês não entendem!? Nós queremos ajudar, deixem-nos ver nossos filhos!, gritavam familiares aflitos.
Logo chegamos na porta principal do primeiro ginásio. Lá já havia pessoas circulando, algumas sentadas nas arquibancadas, outras vestindo jalecos brancos, transitando pelos corredores, de todos os lados, luvas nas mãos e bolsos, mascaras esvoaçantes no pescoço.
__ Falem com a Melissa, ela está coordenando a equipe de Saúde.
__ Melissa, você mesma. Nós somos médicos e viemos ajudar.
__ Venham comigo para se cadastrarem.
Recebemos dois crachás de micropore, um escrito "psiquiatra "e outro escrito " médica". Fomos até os fundos do salão, onde uma equipe de enfermagem já aguardava, com medicamentos.
___ Vou ficar na equipe da psiquiatria, disse a Andréia.
___ Ajudo na parte clínica e vocês na parte psiquiátrica.
Ainda estonteados com a intensa movimentação, me questiono mentalmente: Será que tem algum outro psiquiatra aqui? Logo questiono em voz alta.
__ Sim, o Dr. Neri está aí.
Ufa, não estou sozinho, posso trocar ideia com alguém da área.
Logo avistamos o Dr. Ângelo, a Dr Hilda, o Dr Maurício, "o Jack" veio. Ah! Aquele rapaz de jaleco parece residente da psiquiatria. Já somos um time, não estou sozinho neste campo de guerra, pensei.
__Como vamos atuar? Estavam falando em cada psiquiatra compor uma equipe, junto de enfermeiros e psicólogos.
__ Acho melhor formamos um local centralizado da psiquiatria, para atender as pessoas que precisarem, opina o Dr. Neri.
__Vamos para lá., então., conclamo.
__ O que vocês tem de medicamentos?
__Temos rivotril, diazepan, valeriana, imipramina, etc.
__Tira fora essa imipramina e valeriana, não usamos isso em emergências, falo com autoridade.
Começamos os primeiros atendimentos, antes mesmo do início do reconhecimento dos corpos pelos familiares. Uma moça, de uns vinte e poucos anos, começou a ter uma crise de ansiedade, seguida por sintomas conversivos. Foi medicada com rivotril e deitada na maca. Muitos psicólogos já se aproximavam dando o suporte psicoterápico brevíssimo, com ajuda de dois enfermeiros.
Logo, mais um atendimento, mais outro, e outro...
___ Crise hipertensiva, fala a Andréia. Traz um captopril SL.
___ Essa aqui está com a sistólica elevada, que você acha darmos um calmante para ela?
Respondo:
__ Claro!.
__Um rivotril, pergunta a Andréia.
__ Sim, um rivotril 0,5mg.
___Vocês trouxeram haldol e fenergan? pergunto.
__Não, só temos diazepan injetável.
__Então providenciem, porque se houver alguma agitação psicomotora , esses medicamentos que temos aqui não dão conta.
De fato, mais tarde o haldol e fenergan injetáveis foram usados em duas situações de agitação intensa, numa em que a mãe perdeu dois filhos e naquela moça, medicada antes de reconhecer o corpo de um parente. Depois do reconhecimento, ela ficou ainda mais agitada, precisou ser sedada e contida na maca.
___ A senhora quer falar? Se quiser falar, fale , se não quiser, eu entendo e estou aqui para lhe ajudar, disse a Andréia.
___ Sim, ele recém tinha terminado o ensino médio, um rico de um guri. Eu só quero o meu filhinho de volta.Agora que ele ia estudar. Só trabalhou até hoje. Somos da cidade de Jóia.
Ao escutar o diálogo de "orelhada", fiquei emotivo pela primeira vez. Senti uma tristeza brusca, tosca e atrapalhada. Até aquele momento ainda me mantinha robotizado, avaliando e medicando, através do entorpecimento matinal. Mas o combustível acabou ... me peguei humano, fragilizado pelo sofrimento de uma mãe.
Encontro o Dr. Neri, colega psiquiatra.
__ Já viu os corpos?
__ Não, respondi.
__ Acho que todos da equipe deveriam ver, até para ajudar os familiares e conhecer os limites de cada um. Há pessoas aqui que nunca passaram por essa experiência, concluiu.
__ Vamos lá, Marcos?!, convidou a Andréia.
Fomos ao outro ginásio, adjacente ao principal. Passamos pelo sol quente, e então encontro o Maurício, do Jornal.
__Que situação! , hein.
__ Horrível, respondi rapidamente, apressando o passo para chegar no outro lado.
A paisagem modificou-se. Guardas na porta vigiavam a entrada. Caminhões estacionados no lado de fora.
Entramos.
Chegamos até a porta principal do ginasião.
Então, deparei-me com o meu limite, como disse o Neri. Fixei o olhar rapidamente, como se querendo testar a resistência das minhas retinas diante do inimaginável.
Olhei rapidamente. Olhei fixamente então. Continuei firme, meus olhos registraram um cenário de guerra. Corpos dispostos lado a lado, em cima de uma lona preta, num salão frio, ainda com os sinais da fuligem, dos machucados e do fogo.
Não pareciam tão jovens, mas foi um engano inicial.
Eram muito jovens. Seus corpos deitados, com as carteiras de identidade e celulares sobre o peito.
Rostos serenos em dois que pude fixar os olhos. Lábios escuros pela asfixia.
Alguns com mãos em garras, em busca de algum fôlego que não veio.
Alguns com o rosto queimado pelo calor ou pela borbulha quente do líquido pulmonar extravasado pela boca.
Alguns com queimaduras no tórax.
Todos mortos, como num campo de guerra, recolhidos para reconhecimento. Sim, o triste reconhecimento pelos pais, amigos e parentes. Estava diante do inimaginável. Imagens que carrego comigo, num piscar de olhos ou quando acordo pela manhã. Ainda posso ver, por muito tempo verei, porque minha retina ficou queimada como eles com a marca da tragédia. Caixões passavam pela porta, tão logo havia um reconhecimento.
Na manhã de domingo , acordei entorpecido. Não podia dimensionar o tamanho da tragédia que se abateu sobre a minha cidade, na qual vivo há 22 anos. Ainda não consigo dimensionar o que está acontecendo...Mas posso dizer que os olhares secaram, junto com a vida de 235 mortos dessa tragédia. Em cada pai que recolheu seu filho ou filha, nos voluntários que sofriam, mesmo tendo que demonstrar força, nos profissionais que também atendemos, sentindo-se mal diante da dura missão de ajudar os sobreviventes, não encontro mais palavras...
No dia 27/01/2013, uma tragédia ceifou a vida de centenas de jovens, a sua esperança de futuro e a esperança de seus familiares, mortificados pela perda. Neste dia, tive que encarar a vida...tentei fugir, mas não tinha para onde correr, pois o mundo inteiro acontecia aqui na minha cidade. E diante do inimaginável, calei... entorpecido outra vez.